Cardeal Orani João Tempesta
Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ)
Neste ano, ao falarmos de caridade no sentido de amor fraterno, serviçal e desinteressado nos vem correndo à mente outra palavra que tem um significado muito rico nas parábolas evangélicas, especialmente no evangelista Lucas – a misericórdia.
Esta é definida na Língua Portuguesa como “a virtude que leva a ter compaixão pelas misérias dos outros”. Definição precisa em que cada palavra tem seu significado e por isso merece, ainda que de modo sucinto, um aprofundamento.
Virtude é a disposição ou a força constante da alma que nos leva a praticar o bem e a evitar o mal. Compaixão, por sua vez, é sofrer com (cum + passio, passionis, no Latim), ou seja, não basta somente o meu interesse teórico pelos problemas do outro. Ao contrário, sou chamado – a exemplo de Cristo que veio do seio do Pai partilhar conosco todas as vicissitudes desta vida, menos o pecado – a “sentir na pele” o que sente o meu irmão, a fim de poder, desse modo, entender o seu drama e buscar, incansavelmente, uma saída eficaz para os males que o acometem.
Dito isso, não há como não pensar, de imediato, na parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37), mergulhar nessa narrativa de Jesus e dela extrair consequências práticas para a nossa vida diária cercada por tantas belezas naturais, mas também por não poucas e nem pequenas mazelas humanas a clamarem por soluções imediatas.
Pois bem, Lucas nos conta que Jesus está em uma sinagoga nas proximidades de Jericó e ali um Doutor da Lei (legista) lhe propõe uma questão espinhosa: “Mestre, que devo fazer para possuir a vida eterna?” Longe de dar uma resposta pronta, que poderia acarretar discussão estéril e prolongada, Jesus faz ao legista outra pergunta, levando-o à reflexão a partir da própria legislação de Moisés, na qual o interrogante era especialista: “Que está escrito na Lei?”
O legista, então, responde: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, com toda a tua força e de todo o teu entendimento; e a teu próximo como a ti mesmo”. Aqui já há um problema a ser desvendado no desenrolar da narrativa de Lucas, que é o seguinte: para o legista o próximo não era qualquer pessoa, como era para Jesus, mas apenas o companheiro, o amigo, o compatriota, o vizinho de tribo, enfim, o conceito de próximo se restringia a um grupo bem restrito de pessoas.
Vê-se, assim, que a prática da caridade para o especialista em leis que busca Jesus estava limitada a quem fosse israelita e não aos estrangeiros, por exemplo. Para ele não era válido o ensinamento de São Paulo a dizer que a plenitude da Lei é a caridade (Gl 5,14), por isso insiste o legista no questionamento a Cristo: “E quem é meu próximo?” Aqui há outro impasse: se vale a Lei pela Lei, só é próximo quem tem a mesma nacionalidade, mas se vale a mensagem de Jesus, então todo ser humano deve ser considerado meu semelhante, e tenho o dever ético de ajudá-lo em suas penúrias.
Certamente, mais uma vez, para evitar uma discussão delongada e infrutífera, o Senhor Jesus contorna a pergunta contando a parábola que ficou conhecida como a do “Bom Samaritano”, e inspira até hoje tantos nomes de instituições de caridade pelo mundo todo. E qual o teor dessa rica parábola que evoca solicitude para com a miséria alheia?
Conta Jesus que um homem descia de Jerusalém para Jericó e, na estrada, foi assaltado, espancado e deixado quase morto. Passam pelo ferido um sacerdote e depois um levita, homens de Deus, mas que, talvez para não se atrasarem para o culto, não perdem tempo com o necessitado.
Eis, porém, que, em seguida, atravessa por ali um samaritano, homem que o Doutor da Lei odiava, especialmente por razões político-religiosas. Sim, eles eram filhos de assírios com israelitas e, portanto, considerados impuros. Ademais, construíram um templo próprio sobre o monte Garizim, afastando-se, desse modo, do verdadeiro Templo de Jerusalém, gesto que levava os samaritanos a serem considerados cismáticos.
Contudo, é o excluído samaritano quem ajuda o caído, untando suas feridas com vinho e azeite, prestando-lhe, como diríamos hoje, os primeiros socorros. Depois, leva-o a um albergue, cuida dele durante a noite e, ao sair para seguir viagem, deixa ao dono da hospedaria pagamento antecipado para o cuidado do enfermo, garantindo ainda que se houvesse algum gasto a mais, na volta da viagem, ele – o samaritano – pagaria.
Concluída a parábola, Jesus se volta para o Doutor da Lei e pergunta: “Na tua opinião, qual dos três foi próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões?” Ora, o legista não queria responder: “o samaritano”, nome que ele não ousava pronunciar, mas também não poderia cair em contradição dizendo que fora o sacerdote ou o levita. Então se sai com essa: “Aquele que usou de misericórdia para com ele”, ou seja, o samaritano. Ao que o Senhor Jesus exorta: “Vai tu também e faze o mesmo”.
Dessa parábola, poderíamos tirar muitas reflexões proveitosas. Atentemo-nos, porém, para algumas delas:
Ela remove a ideia de que próximo é só o meu conterrâneo ou o meu amigo. É meu próximo todo homem ou mulher que necessite da minha ajuda. Não preciso saber seu nome, sua terra, sua religião, seu status social. Devo estender-lhe a mão e socorrê-lo. Afinal, a razão de o Evangelho omitir o nome e a região de proveniência do homem assaltado não é para ensinar que todos somos, indistintamente, irmãos?
Outro ponto é que o problema da caridade não está em quem será auxiliado, mas em quem auxilia. Temos preconceitos e até tentamos nos justificar: se ele não fosse dependente químico, eu até o ajudaria; se ela não morasse naquela região da cidade, eu bem que poderia auxiliar; se ele fosse outra pessoa e não um ex-presidiário, até que eu faria algo por ele… E assim vai nossa cantilena de justificativas sem compaixão.
Um terceiro aspecto a destacar é o amor aos inimigos, algo difícil e que exige de nós uma profunda conversão diária. Difícil, sim, porém não impossível, especialmente se contamos com a graça de Deus, que a ninguém falta. É por essa graça que ficou marcado o exemplo do Papa João Paulo II ao visitar, na cadeia, o homem que tentou matá-lo na Praça de São Pedro, a fim de oferecer ao atirador profissional o seu perdão.
Ainda uma questão pode ser aprofundada: como é possível viver essa caridade misericordiosa e compassiva? – Responde-nos Bento XVI: “Isso só é possível realizar-se a partir do encontro íntimo com Deus, um encontro que se tornou comunhão de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento. Então, aprendo a ver aquela pessoa já não somente com meus olhos e sentimentos, mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo. O Seu amigo é meu amigo. (…) Mas se na minha vida negligencio completamente a atenção ao outro, importando-me apenas com ser ‘piedoso’ e cumprir os meus ‘deveres religiosos’, então definha também a relação com Deus. Nesse caso, trata-se de uma relação correta, mas sem amor. Só a minha disponibilidade para ir ao encontro do próximo e demonstrar-lhe amor é que me torna sensível também diante de Deus. Só o serviço ao próximo é que abre os meus olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama” (Deus caritas est, n. 18).